domingo, 14 de novembro de 2010

Verde, amarelo, preto e branco

Em um post anterior comentei como a expansão do futebol está associada à imigração européia principalmente de operários. Se formos analisar a história do futebol, em nosso país, chegaremos rapidamente a confirmação desta impressão.

Apesar da primeira partida organizada por Charles Miller ter contado com a participação de trabalhadores das ferrovias paulistas, primeiramente, o futebol ganhou espaço com membros das elites européias imigrantes e foi praticado em clubes da alta sociedade brasileira. Justamente por isso, alguns clubes de futebol são o desdobramentos de clubes sociais ou dedicados à outros esportes, como é o caso do Flamengo e Vasco da Gama e seus Clubes de Regatas.

No entanto, a massificação do esporte somente veio por volta da década de 1910, período de franca expansão das indústrias no país e que se estenderia até meados da década de 1940. Por conta disso o momento de surgimento das ligas de futebol está associado a jogos entre trabalhadores de fábricas rivais. Isso é mais claro em São Paulo do que em outros lugares. Por isso, como sabemos, eram poucos os jogadores oriundos das camadas altas da sociedade a se dedicar “profissionalmente” ao esporte. Quando o faziam, causavam certo desconforto ou inspiravam alguma desconfiança, como foi o caso de Heleno no Botafogo do Rio.

Porém, o que me chama a atenção não é o fato de que o futebol seja o esporte das camadas populares e trabalhadoras desde sua gênese. O que me intriga é o fato de que o esporte ao invés de realçar as diferenças sociais e demarcar um nítido distanciamento entre as classes, acabou servindo como forma de reafirmar nossa identidade mestiça. No imaginário social do brasileiro, o futebol não é o esporte do operário, mas o esporte do mulato, da ginga mestiça, da criatividade brasileira. Poderia até mesmo sugerir que as pessoas realmente acreditam haver relação entre o drible e a capoeira (essa sim vista por alguns como o primeiro esporte legitimamente brasileiro).

Da mesma forma, o futebol, acaba por afirmar a existência da possibilidade clara de mobilidade social para as camadas mais baixas da sociedade. Neste sentido, pobres e negros teriam a sua chance de redenção pela prática do esporte. A mobilidade social, ao invés de estar associada à educação e à meritocracia capitalista, apareceria em um esporte que, ao contrário do que deveria ser, afasta as crianças da escola em momentos chaves de seu processo educativo. O futebol, portanto, dá a entender que a democracia racial é realmente efetiva em nosso país. Um futebol de mulatos para um país de mulatos. No entanto, entre a mídia esportiva a ausência de negros é gritante! Ou seja, os setores envolvidos com o futebol que necessitam de formação educacional continuam sem possuir a presença de negros.

Ao contrário do que se poderia supor, penso que o futebol não representa a vitória do mulato e da civilização tropical evidenciada por Gilberto Freyre, mas, ao contrário, a idéia de que o esporte demonstra como a sociedade brasileira possui desigualdades sociais gritantes entre membros de grupos étnicos distintos. Longe de ser a vitória do mestiço, o futebol expõe como os caminhos da integração racial em nosso país não passam de um grande mito que, ao invés de colocar em pauta essa discussão da desigualdade e discriminação racial, afasta o problema para debaixo do tapete ao rotular todos nós como mestiços e o futebol como nossa maior vitória!

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

As duas faixas do Capitão

No dia 20 de outubro de 2010 ocorreu na cidade de Barcelona o jogo de ida pela fase de grupos da Champions League entre Barcelona e Copenhague. O jogo foi 2 a 0 para o culés com dois gols do argentino Lionel Messi. Sem maiores euforia e dificuldades o time catalão impôs uma vitória, até certo ponto óbvia sobre os dinamarqueses. O momento inusitado e curioso da partida ficou por conta de uma atitude do capitão do “time espanhol” Carles Puyol.

Segundo exigência da Fifa, os capitães deveriam entrar com a braçadeira oficial da UEFA, organizadora do evento. Apesar de acatar a imposição do órgão máximo do futebol mundial, Puyol também entrou com a tradicional braçadeira dos capitães barcelonistas que leva as cores amarelo e vermelho, simbolizando o escudo da Catalunha. Isso mesmo, o capitão entrou com duas braçadeiras!

Puyol é tido por muitos analistas como o típico jogador “grosso”, tecnicamente limitado. Muitos outros concordam com essa sentença, mas acrescentam que o jogador faz o tipo raçudo, que se dedica incansavelmente ao time. Para os torcedores do Barcelona, Puyol é a representação cabal de um jogador que joga por amor ao clube. Em quase 100% dos “Barcelonas de Todos os Tempos”, feitos de maneira imaginativa por torcedores ao redor do mundo, Puyol aparece entre os titulares.

É bom lembrar que, ainda no início da década (2002/2003), o time catalão passou por sua pior fase dos últimos tempos. No campeonato espanhol, ficou em uma zona intermediária da tabela e, em alguns momentos cogitou-se, até mesmo, uma luta contra o rebaixamento. Efetivamente, isso não ocorreu, mas o time nem sequer conseguiu uma classificação para a Liga dos Campeões da temporada seguinte. A torcida pediu veementemente que se fizesse uma reformulação na equipe com a demissão de vários jogadores. O técnico Van Gaal foi demitido e muitos integrantes do elenco seguiram para outras equipes. No entanto, entre as várias reivindicações da torcida, uma delas, curiosamente, solicitava que Carles Puyol, então lateral direito, tivesse aumento de salário. Isso mesmo, aumento de salário!

Catalão, nascido na província de Lérida, jogador formado nas canteras barcelonista, Puyol havia sido um dos poucos a demonstrar dedicação a equipe na visão dos torcedores. Na temporada de 2004 já passou a ostentar a braçadeira de capitão. Desde então, a relação de Puyol com o clube foi muito mais do que a de um simples jogador com uma equipe. Em um país como a Espanha, onde o sentimento de nação é estilhaçado pelos sentimentos patrióticos das comunidades autônomas que constantemente colocam em questão o poder político da capital Madrid, jogar pelo Barcelona é jogar pela Catalunha. Na época de Franco isso era ainda mais evidente e, atualmente, se fez presente, por exemplo, nos jogos da Copa da África.

Durante o mundial de 2010, em muitos bares da Catalunha, torcedores foram reprimidos por torcerem pela seleção espanhola, sendo acusados de traição. É verdade que não é um costume entre os catalães torcer pela Espanha em jogos de futebol. Muitas vezes, as festas de Madrid são contrastadas pelas ruas vazias de Barcelona em épocas de Eurocopa ou Mundiais. No entanto, para uma parcela do povo local, aquela seleção somente dava (como deu) certo, pois tinha em seu time "titular" 6 jogadores catalães (Puyol, Busquets, Fábregas, Iniesta, Xavi e Piqué). No entanto, mesmo assim, bares com torcedores pró-espanha foram apedrejados na cidade catalã em protesto ao apoio ao time oficial da Coroa, a seleção espanhola.

Jogar pelo Barcelona, assim como pelo Valência, Athletic Bilbao, entre outros, é colocar em campo algumas das tensões políticas e culturais que se apresentam camufladas pelas relações do poder estatal e das leis que estabelecem a união das comunidades autônomas em um Estado que não quer ser nação. Na época da ditadura de Franco, como já mencionamos, qualquer um desses times que jogava contra o Real Madrid, via na partida uma chance de derrotar o time oficialista, o time de Franco.

Em Maio de 2009, algumas décadas após o fim do franquismo, em um jogo entre Real Madrid e Barcelona, realizado na capital espanhola, o time da casa saiu ganhando. Pouco tempo depois, o Barcelona chegou ao empate e já aos vinte minutos do primeiro tempo, Puyol marcaria o gol da virada. Sua comemoração não poderia ser mais representativa de tudo que dissemos até agora. Diante de um Santiago Bernabéu repleto de madridistas e madrilenos, tirou a sua braçadeira de capitão, com as cores da Catalunha, e a beijou efusivamente. O jogo terminou 6 a 2 para o Barça e, praticamente garantiu o título espanhol da equipe com 5 rodadas de antecedência.

Agência/Reuters

Beijou a braçadeira pois sabe que é somente ali, no campo, na cancha, que se pode ganhar de Madrid. Da mesma forma, contra o Copenhague, entrou com as duas braçadeiras em campo, pois sabe que, no campeonato europeu, ele não defende a Espanha, mas sim a Catalunha. A Catalunha, que, na Liga dos Campeões é representada por um time que estampa em sua arquibancada o fato de ser: "mais que um clube"... talvez, uma nação!