sexta-feira, 19 de março de 2010

Futebol, por que não?

A cada dia que passa fico mais impressionado com os trabalhos realizados pelas ciências sociais no que diz respeito ao conceito de cultura. De maneira mais intensa, interessa aos pesquisadores um maior envolvimento com o cotidiano para a compreensão de como as sociabilidades e as “regras” sociais são criadas e partilhadas. Como resultado, ao mesmo tempo que novos objetos e atores sociais ganham espaço em suas pesquisas, antigos conceitos sociológicos também passam por uma profícua revisão. Até mesmo o estudo das relações trabalhistas e dos conflitos de classe, tabus da sociologia marxista, recebem novos contornos. Desta maneira, a visão de que as condutas sociais da população comum nada mais são do que o resultado da simples imposição da elite econômica por meio dos canais de informação também passou a ser questionada.
É inegável que as discussões a respeito do conceito de cultura, iniciadas ainda na década de 1960, serviram para que rompêssemos com aquela visão dicotômica da cultura, que separava a sociedade em dois mundos: o mundo formalizado e o mundo informal; a cultura erudita e a cultura popular. Felizmente essa barreira foi superada. Cultura passou a ser vista, grosso modo, como os símbolos e significados criados por uma determinada sociedade com o intuito de explicar a realidade em que a mesma se insere, sendo tais significados social e coletivamente partilhados. Logo, sabemos que pertencemos a uma determinada cultura quando conseguimos compreender, de maneira semelhante aos demais, os significados criados para normatizar, regular e dar sentido ao nosso meio.
Nós brasileiros partilhamos uma série de significados que foram criados entre nós e socializados por meio da família, da mídia, da escola, do trabalho e dos ambientes sociais. Independentemente de classe, de cor e de formação educacional existe uma série de elementos que interpretamos de forma semelhante aos demais brasileiros. É evidente que dentro de uma mesma cultura existem sub-culturas que se inserem em realidades regionais ou trabalhistas, por exemplo. Por isso é justo e correto afirmarmos a existência de uma cultura gaúcha ou de uma cultura operária, entre outras. Mas em vários momentos, elementos e significados criados dentro de uma sub-cultura podem extrapolar tais limites e se converterem em cultura nacional ou, até mesmo, supra-nacional. Não é equivocado dizer, por exemplo, que exista uma cultura ocidental.
Se cultura é algo que se transmite pela família e em ambientes de sociabilidade difusa, é possível dizer, por exemplo, que a cultura não representa tão somente as coisas que são institucionalizadas. Um dado elemento de uma cultura pode nascer em ambientes ditos “populares” e, posteriormente se converter em ícone nacional. O samba é um exemplo disso. Tendo essa prerrogativa como válida, existem várias formas de se abordar e se estudar a cultura que não sejam por meio das instituições. Os autos de fé, as festas populares, a música, a dança, a religiosidade, as migrações, o corte da cana, enfim, são exemplos de como as ciências sociais debruçam novos olhares sobre o cultural e seu campo.
No entanto, a surpresa é que o Futebol não consegue ganhar o mesmo espaço. Surpreendentemente, com raríssimas exceções, o futebol não consegue ganhar espaço nas fileiras universitárias. É bem verdade que existem estudos sobre o comportamento violento de torcidas organizadas, por exemplo. Mas geralmente, essas pesquisas preferem se colocar junto aos estudos de psicologia social ou comportamentalista, quando muito ao lado de estudos sobre tribos urbanas. No entanto, por se focarem ao comportamento em si, não se fala daquilo que motiva o encontro dessas torcidas que é, antes de qualquer coisa, o futebol.
Desde cedo o futebol ganhou no Brasil o símbolo de “Paixão Nacional” e, como paixão não é algo racional, não cabe o trabalho de ser estudado. Parece ser este o motivo da falta de interesse dos intelectuais sobre o futebol. Como bem afirmou José Miguel Wisnik em seu livro Veneno Remédio, “viver o futebol dispensa pensá-lo, e, em grande parte, é essa dispensa que se procura nele. Os pensadores, por sua vez, à esquerda ou à direita, na meia ou no centro, têm muitas vezes uma reserva contra os componentes antiintelectuais e massivos do futebol, e temem ou se recusam a endossá-los, por um lado, e a se misturar com eles, por outro”. Alberto Flores Galindo, um importante intelectual peruano já falecido, possui uma frase emblemática sobre o assunto que diz: “pouco se estuda sobre os presídios e os campos de futebol, apesar de o que se passa dentro deles tem muito mais à dizer sobre a sociedade”.
A idéia de que intelectual genuíno não se mistura com o futebol fica clara quando analisamos rapidamente o caso de Nelson Rodrigues. Não são raras as vezes que tentam separar as crônicas futebolísticas do autor de suas brilhantes peças e romances sobre a vida privada do brasileiro. Chega a parecer que falamos de dois autores. Algo como se o futebol fosse apenas a diversão de Nelson Rodrigues e, por isso, não o levasse tão sério assim. Muitas vezes as crônicas de Nelson Rodrigues são lembradas em mesas de debate e opinião esportiva, como se fossem lendas ou ditos populares. Sempre antes de um Fla-Flu aparece uma frase enigmática dita pelo genial escritor que afirmou: “o FlaXFlu nasceu 40 minutos antes do nada e depois Deus Criou o Mundo”. Porém, nunca se pára para indagar o que um intelectual do porte de Nelson Rodrigues queria dizer sobre isso. Poderíamos tentar algo, como: qual é a importância que o futebol ocupa na vida das pessoas de nossa sociedade ao ponto de se afirmar que ele é anterior à própria humanidade?
Por conta dessa cisão, o que se dá a entender é que o futebol deve ficar reservado ao mundo privado, aos temores, angústias e anseios internos, próprios das questões destinadas ao foro intimo. Deve ficar lá, onde é o seu lugar, ao lado da malandragem, da cerveja, “da pipoca, do amendoim e do tremoço”. Misturar futebol com pesquisa acadêmica é visto, portanto, como a morte da erudição. Seria o equivalente a trazer assuntos caseiros para dentro do escritório, como descontar em um colega de trabalho a briga que teve com a sogra!
Por conta disso, a ausência do cientista social na análise dessa brilhante manifestação cultural, o futebol, faz com que exista uma brecha, um campo vago de estudo, que acaba sendo preenchido por jornalistas. O jornalismo sim, sempre levou o futebol a sério. Porém mais do que narrar, relatar ou comentar sobre os jogos de futebol, próprios do ofício do jornalismo, os jornalistas se vêem obrigado a tentar compreender o futebol para além do evento esportivo observado. Por isso, no Brasil, os livros sobre a história do futebol, e da relação do futebol com a cultura, são feitos por jornalistas.
Vejam bem. Não se trata de uma crítica à esses jornalistas. Ao contrário. Ainda bem que existem! Ainda bem que há gente competente que leva o futebol a sério! Posso dar uma lista sem fim de jornalistas esportivos que admiro intelectualmente e que conseguem ver o futebol para além de um simples jogo dedicado a fazer as pessoas esquecerem sua dura rotina de trabalho. Futebol é mais que isso! Futebol é muito mais que isso!
Para entender o que quero dizer, basta assistir um jogo entre Real Madri e Barcelona para entender o que digo. Quando a equipe Azul Grená entra em campo, os torcedores levantam placas que fazem do estádio um verdadeiro letreiro gigante que diz: “Mais que um Clube”. Não é difícil entender o que aquelas pessoas querem dizer: somos catalães mais do que espanhóis. Nos tempo de Franco, por exemplo, Valencia e Real Madri era mais do que uma partida, era também a continuação de uma guerra que não havia se findado com a vitória das tropas franquistas sobre a ultima resistência valenciana.
Basta saber que durante a Ditadura Argentina, presos políticos, mesmo amarrados e torturados jogados no chão e com a cabeça coberta por sacos plásticos, gritavam apaixonadamente “Gol” a cada vez que escutavam os fogos de artifício que vinham do lado de fora de suas prisões anunciando as façanhas de Kemps e seus companheiros. A paixão pelo time superava o ódio que possuíam pelos militares. Era o mesmo que dizer: a Argentina não são vocês e é por ela que torço!!!
Basta olhar para os selecionados que possuem tradição futebolística e perceberem que se tratam de países de forte desenvolvimento industrial. Não me espanta, por exemplo, que os melhores selecionados da América Latina sejam países que, na década de 1930, apostaram em políticas de inversão de importações e passaram a se industrializar. A migração de italianos e espanhóis para trabalhar nessas fábricas tem muito a nos dizer sobre o sucesso do futebol nesses países!
Enfim, este blog é para isso: para entendermos a sociedade por meio do futebol. Será o futebol a porta de entrada para racionalizarmos sobre os símbolos e significados existentes em nossa sociedade. Se me estendi muito neste post, foi porque vi a necessidade de situá-los no que pretendemos fazer neste espaço/blog. Para deixá-los na cara do gol e trazermos o futebol para o campo das análises sociais, com o perdão dos trocadilhos!